Como tudo aconteceu:

 


                         A minha "Evolução"

Corre-me no sangue a paixão por esta lida, desde tenra idade que a alça da sacola que a

minha mãe fazia de tecido vindo de Manzalvos (1), carregada com a merenda e o
fio de tecido vermelho da bota do vinho me cruzavam o peito nos dias de caça e
me batiam com imensa força nas costas cada vez que eu saltava e corria para o
cimo de uma fraga na tentativa de ver o coelho que se esgueirava ora veloz ora
sorrateiramente ao "piar" dos cães. E digo "piar" porque
ainda me lembro de uma redacção que eu redigi na minha escola primária onde
descrevia uma cena de caça com cães que "piavam" intensamente na
peugada de um coelho... "Ladravam" escreveu a professora a vermelho por
cima. Mas que grande confusão na minha cabeça! O meu pai e os outros caçadores
dizem os cães piam e agora "a minha mestra" que nem sequer nunca viu
um coelho bravo vem-me ensinar que os cães ladram e não piam quando os
perseguem! ...Além do mais, continuava eu a memoriar, eles ladram é aos lobos
quando uivam noites e noites a fio, na encosta do outro lado, do Monte do Rabo
d´ Égua e uns aos outros e nestas coisas de caça, os caçadores mais velhos é
que sabem, e eles continuam a dizer piam e mais nada! Rematava eu na razão da
minha incompreensão.


Era um grupo excelente, recordo o saudoso Tio Arménio, na sua postura imperial com
a sua arma francesa de canos sobrepostos transportada em cima dos ombros,
recordo o exímio contador de histórias de caça...era inigualável!!!. O Ti
Teófilo sempre teve bons cães e era um excelente caçador, mas tinha um vício
danado pelo tabaco, se se lembrasse de fazer um cigarro quando um cão descobria
um coelho, não importava! Enrolava-o, e com perícia, fazia dois ou três
movimentos no seu isqueiro de tocha e lá estava ele a degustar as folhas do seu
tabaco, enroladas por mãos calejadas do sustento de tantos filhos que criou.

- Olha um coelho ó Teófilo! Gritava-lhe o tio Artur.

- Deixa-o ir, vai para o Teodoro (meu pai), ela já lhe trata da saúde! ....
e continuava serenamente a fumar o seu mata ratos .....

Quase já se tornava uma tradição. Era enorme a bota do vinho do Ti Teófilo, levava
porventura ai uns 3 litros, mas o danado do vinho, danava quem o bebesse. Então
durante todo o dia, todos os outros caçadores subestimavam-lhe o néctar. As
jornadas eram longas, mesmo que se tratasse da época do Inverno. Ainda com duas
horas para chegar o dia lá vinham eles bater na porta da casa do meu pai,
quando na véspera não se tinham encontrado para combinar a hora de saída e o
local para onde ir.

- Acorda Teodoro, hoje amanheceu estrelado. Vem ai bom tempo. Vamos para lá de
Vale Cerdeira. Temos que arranjar uma dúzia de coelhos p´ra matanças das cêbas
do Ti Palhoças que a Tia Laurinda anda meio impregnada.

Era a pé que se aí, uma boa hora a andar bem. Com a caminhada e o peso dos mornais,
a sede matava-se com uma golada pelo guicho da bota.

Lá para a tardinha, cada qual já com as botas do vinho vazias, a atenção virava-se
então para o Ti Teófilo.

- Dizem que este ano é que tens bom vinho. Dizia-lhes o Moca, já com a garganta
meia ressequida de tanto afoutar os cães na anseia de carregar mais uma vez no
gatilho e matar mais um coelhito.

- Então de manhã não era vinagre? Fodeu-vos! Bebei água que bons corpos cria e
corre em abundancia ai por esses caboucos abaixo.

Pazes feitas lá iam todos botar a molhadinha derradeira, que sabia que regalava...

...e o sol esgueirava-se, já fundo, lá para os lados do Cabeço do Marco......

Foi neste ambiente saudável, puro e fraternal que se fermentou em mim o gosto pela
caça, pelos cães, pelo companheirismo, pela natureza... pelos amigos do monte,
como eu gosto de os enunciar.


Fui crescendo e quando atingi a maioridade, licenciei-me e o meu pai comprou-me uma
arma, era uma PB Mod A302.

Por esses anos o sangue fervilhava-me no peito a
todo o vapor e as pernas queriam cada vez mais transpor montes e vales... a
adolescência ao rubro.

- Que bandada de perdizes se levantou aqui aos cães, pousaram além do outro lado
na Fraga do Cuco. Vai lá tu André que tens boas pernas, gritava-me o Ti Acácio
Pedreiro completamente emaranhado no carquejal das Viúvas.


Era o meu eu cinegético que se ia construindo. Foi a época da minha vida que eu
mais gostei, juntamente com o meu "Brown", um Braco Alemão de
excelente linhagem, fizemos excelentes caçadas ás perdizes, seriam necessárias
umas boas páginas para descrever as qualidades desse bicho... enfim...nunca
mais tive um cão tão completo como esse! Os anos foram passando e senti
necessidade de acompanhar novamente o meu pai na caça aos coelhos. Foi por essa
altura e merece de várias condicionantes, como por exemplo a escassez de caça
menor, o abandono da agricultura e consequente crescimento dos matagais que
comecei a centralizar o interesse na caça grossa que ia proliferando. Adorava
fazer uma espera nocturna e foi ai na tentativa de encontrar javalis que
ficavam feridos que comecei a usar os podengos para os tentar recuperar. Foi o
rastilho!!!! Alguns cães adaptaram-se tão bem que depois já latigavam nos
rastros frios de 12 ou mais horas, nas noites escuras os bichos não funcionavam
lá muito bem á excepção do "Pardalão" que era um podengo raboto
castanho escuro que andava pela aldeia em liberdade, nas noites de luar os
outros era só mete-los nos centeios, faziam imensos agarres.


Um dia conheci um comerciante de gado que me falou num pastor que tinha uns cães
tremendos para o javali. Quando se quer vai-se ao fim do mundo ! Foi uma
empatia recíproca quando o conheci ! E foi aí que começamos os três : O
comerciante de gado que era o Duarte de Argemil que também tinha uns cães muito
bons e o João de Sº Vicente ambos do concelho de Chaves. Cerca de 2 ou 3 anos
depois o Duarte saiu e começou a caçar connosco um espanhol chamado Sevilha.
Logo nesse ano monteamos os três. Passados cerca de 2 épocas ele fez matilha
sozinho, eu, juntamente com o João continuamos os dois, até 2006, foi mais de
uma década juntos! Contudo um problema de saúde da sua esposa, impediu-o de
continuar, tive imensa pena porque éramos muito amigos, se a nossa amizade não
estivesse tão cimentada, como era possível estarmos tanto tempo juntos. A casa
dele dista da minha cerca d 80 Km.!!!!


Já na época eu tinha cães suficientes para montear sozinho, mas gostava da montear
conjuntamente com o João. No ano de 2006 ele teve mesmo que terminar.

Nesse mesmo ano conheci o Jorge de Murçós, um rapaz quase fanático pela caça maior e
cheio de juventude, a trepar monte era inigualável, monteamos 3 três épocas juntos ...


... a "história" continuou a escrever-se......


Um dia quando as pernas não me deixarem ver os horizontes das memórias, direi á
memoria para relembrar esses horizontes, trocarei a lança de remate pela caneta
e farei os meus remates literários perpetuando esta tão nobre paixão, às
gerações vindouras.


(1) Manzalvos é uma localidade espanhola que fica do outro
lado da fronteira da Moimenta de Vinhais. O meu pai no tempo do estado novo, no
tempo da fome e em plena juventude, saia de um pequeno povoado situado nas
fraldas da Serra da Nogueira, na ânsia de arranjar uns vinténs para matar a
fome. Atravessava a pé a Serra da Coroa em toda a sua extensão e plenitude,
para ai ir carregar um fardo pesado de contrabando e regressar pela noite...
mas isso são contos de outros contos...
 


Textos da minha autoria 

Andre Afonso





A  pedido de vários amigos, decidi publicar outros contos da minha autoria que eu tenho escritos, visite a lateral direita "A Pólvora Nobel das palavras"

O amigo e colega matilheiro João Valentim, de Sº Vicente da Raia, concelho de Chaves, e eu , junto a um dos quadros de caça mais expressivos de toda a zona Norte de Portugal, onde tivemos o previlégio de ter monteado. Foi no dia 17 de Janeiro de 2004 em Marmelos- Mirandela onde tombaram 34 javalis. ( Record com 11 anos,  que  apenas foi superado em 2015) 

 


Obrigado pela sua visita, André Afonso